sexta-feira, 8 de julho de 2011

Total eclipse

“Já disse o quanto está escuro aqui sem você?”, datilografou na primeira linha. Mas ela queria mais: deu quatro linhas de espaço antes de recomeçar a carta. E a frase ficou ali, solta, boiando num Pacífico de saudade. “Ligo todas as lâmpadas da casa pra não me sentir só”, escreveu em seguida. Mas achou que ele não entenderia o que ela queria dizer. Então tirou a folha da máquina, fez uma bolinha e mirou no lixeiro da copa. Acertou. Tirou outra folha da resma e encaixou atrás da fita rubro-negra

“Já disse o quanto está escuro aqui sem você?”, mais quatro linhas de espaço. “A verdade é que é bastante escuro aqui nessa época do ano. Meu consolo é que você vai trazer o verão pra mim daqui a alguns meses”. Olhou neurótica para a carta e novamente arranca o papel para fazer uma bolinha. Jogou, mas a folha ficou na fruteira, no meio dos pêssegos.

“Já disse o quanto está escuro aqui sem você?”, começando uma nova carta. Deu quatro linhas. “Passeei pela nossa fonte hoje. Joguei duas moedas. Pedi calor e você. Espero ser atendida depressa”. Riu. Mas logo em seguida arrancou novamente a folha do cilindro, amassou uma bola torta e largou entre o livro do Goethe e a faca de pão.

“Já disse o quanto está escuro aqui sem você? Nunca mais acendi nossa lareira, apesar do frio que faz. Também nunca mais fiz fondue. Mas me sinto gorda e só.”. Desta vez pensou em continuar, mas voltou atrás quando leu o que tinha escrito. “Gorda e só”. “Só, ele sabe que estou mas, gorda?” GORDA?. “E se ele achar que tem o direito de arrumar uma magra depois de ler isso?” puxou com todo o ciúme aquele pedaço de celulóide e atirou contra a parede, depois de fazer uma compacta bolota. Desviou a atenção da máquina de datilografar e ficou estarrecida ao olhar pela porta envidraçada. A neve havia subido um metro. “Meu Deus! Vou morrer soterrada!”. Levantou-se da mesa e desatou a andar pela casa a procura de alguém que a salvasse. Vasculha o porão, destampa compotas, cheira cortinas, lambe porta-retratos. “Você ainda está aqui?”. Não acha. E se volta a para a máquina de escrever mais uma vez.

Já disse o quanto está escuro aqui sem você? Sim, meu caro, está ESCURO DEMAIS! Estou louca e ligo todas as luzes da casa, pensando ver sombras. Nenhuma é a sua. Está escuro, está frio e estou indo a falência de tanto jogar moedas na fonte te pedindo de volta. Estou gorda, obesa, ENORME, não passo na porta. Vivo só de comer fondue. E agora parece que vou morrer soterrada, porque a neve já cobre um metro lá fora. Eu preciso de você! Eu preciso que você venha me salvar! Preciso que você traga lenha e que se traga pra mim, antes que o frio dessa cidade me tome. ONDE ESTÁ VOCÊ? ONDE ESTÁ SEU CALOR? Eu preciso de sol! Eu preciso de vida! E eu só tenho isso quando você nasce aqui, nesse maldito oriente! Me aqueça. Pelo amor de Deus, venha me aquecer...”. Depois que bateu três vezes na tecla de ponto, se sentiu a mais ridícula das criaturas. Tirou o papel do datilógrafo e picou em mil pedacinhos, menores que os flocos da neve que caía. E chorou. Chorou por muito tempo até que sentiu o frio lhe tomar. Saiu espantada da mesa, ligou o aquecedor que comprou depois do acidente com a lareira e foi fazer um chá. Ao lado estava a fruteira. Parou. Pegou a folha que havia ficado presa entre os pêssegos e rasgou a parte do papel que continha a primeira frase. “Já disse o quanto está escuro aqui sem você?”. Dobrou, pôs num envelope, selou. No dia seguinte, limpou o resto de neve que não havia descongelado em frente à porta e saiu. Passou no correio e enviou a carta. Estava bem escuro lá fora. Assim mesmo.

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