quarta-feira, 30 de março de 2011

Acrilic On Canvas

Atire o primeiro potinho de tinta guache aquele que quando criança nunca riscou uma parede de casa. Atire o primeiro cavalete aquele que nunca se sentiu um Picasso ao fazer isso, mesmo levando um castigo ‘daqueles’ depois de acabar com aquele lindo tom pastel escolhido por sua mãe pra estampar a sala de estar. Já estraguei muitas paredes, de muitos cômodos aqui de casa, graças a minha eterna ‘Fase Azul’. Acho que ninguém, além de mim, entendia o que eram todos aqueles riscos que já foram cobertos por outras camadas de tinta menos átonas (aleluia!). Riscava sim. Não por falta de papel, que eram comprados às pilhas pra satisfazer meus instintos mais selvagens de arte infantil (em ‘instintos mais selvagens de arte infantil’, leia-se bonecos de palito e sóis tortos de sorriso roxo). Riscava porque achava tudo na minha vida muito branco, tudo muito sem cor. Filho único, com pais absorvidos no trabalho, me restava estudar e quando em férias, pintar paredes. O start foi no meu quarto. Pintei bonecos de palito, sóis tortos, escrevi nomes de paqueras juntos do meu, medi minha altura ao longo dos meses com belos ricos de hidrocor num canto perto da porta... nomes de escolas pelas quais passei, nomes das musas infantis que apresentavam desenhos na TV... meu quarto, branco, virou um grande caderno de colorir. Caderno considerado ‘subversivo’ pelos meus queridos pais ditadores (ditadores socialistas, sem torturas, que fique claro) nunca liberado a rigor federal. Não contente, passei a amarrar meu arado em outras estrelas e comecei a desenhar nos azulejos da cozinha, no armário do quarto dos meus pais, no box do banheiro... até que em cada cantinho da casa um desenho meu estava estampado.

Quem leu o texto até aqui e não se perdeu no meio de tanta bagunça pichada na parede, deve estar se perguntando: ‘cadê todo aquele papel que era comprado pra você?’. Chegamos em outro ponto interessante. Para o papel, sobravam as maravilhosas histórias, onde em todas eu era o herói e meu cavalo só falava português mesmo. Escrevia tudo aquilo que eu não poderia ser, preso em casa. Tudo o que poderia cantar, interpretar, criticar estava naquelas pilhas A3. Pilhas essas que foram pro lixo sem eu nunca ter mostrado a ninguém. Canções de versos gonzos, poesias com pretéritos mais-que-marginais, pensamentos acerca dos meus amores de colégio e sobre o quanto amava e discordava dos meus pais: uma preciosa expressão de identidade pueril que foi perdida.

Fui crescendo e as responsabilidades foram esticando também. Entrei para o ensino fundamental e tive que integrar os Números Inteiros ao conjunto vazio que era minha vida real e vocativos de orações ao meu silêncio de filho sem irmãos. Uma grande reforma foi feita em minha casa e assisti de modo passivo meu caderno de colorir ser apagado incontinênti, dando lugar a um belo e melancólico azul-celeste (que hoje por vários motivos, está mais para azul-calcinha). O quarto estava nu.

Veio o ensino médio, vestibular e a faculdade. Faculdade. Dor e delícia de conseguir amigos que te entendem e encontrar-se perdido no meio de várias encruzilhadas junto com todos eles. E talvez eu seja o mais perdido de todos; paqueras mais infantis que as que eu escrevia em meu caderno de criança, embates familiares maiores do que aqueles que eu escrevia em folhas A3 me puseram sufocado. Ninguém pediu pra que eu cortasse os grilos (são muitos, Erasmo, não dá). Aquela criança criativa, subversiva e imaginativa foi apagada, junto com o caderno de colorir e em vez de azul-celeste, fiquei desbotado em meio a paranóias, frustrações e preocupações. A essa altura, já tinha me esquecido do que era um lápis de cor. Tive vontade de chorar e chorei quando vi o clichê ambulante o qual me tornei: fui feliz e não sabia. Passei a me procurar, a procurar meus riscos. Passei uma lixa nessa parede desbotada, mas não consegui encontrar nenhum colorido atrás daquele triste azul.

Literalmente fodido, pensei em recomeçar. Chegar de novo às chupetas e as fraldas para reativar o meu espírito e trazer de volta os riscos incompreensíveis dos quais eu já me contorcia de saudade. Comprei uma caixa de giz de cera, catei todos os papeis que estavam sem serventia em casa e passei a pintar. Desenhos mais primitivos e mais incompreensíveis que aqueles da parede e ao mesmo tempo cheios de sentido pra mim. Ainda estou desbotado, mas sinto uma áspera e delicada lixa me redescobrindo. Digo hoje que não há nada melhor que me esparramar no chão e desenhar os círculos em giz que cobrem hoje meu quarto (um deles, ilustra esse post). Folhas e mais folhas repletas de gente, de sentimento e de paz, que a partir de hoje vão colorir de matizes mais vivas os caminhos os quais eu pretendo tomar. Despertar agora? Jamais.

Esmejoano Lincoln

7 comentários:

  1. uma das coisas mais lindas que ja li em toda minha vida, seja em livro , seja na net. poético.

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  2. E o menino ainda teve a cara de pau de me dizer que não escrevia bem. Texto lindo!

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  3. Odeio gente modesta, hehe.

    Grande texto, Lincoln. Não só em tamanho, como em profundidade.

    Você conseguiu definir bem a passagem que todos nós fizemos, recentemente.

    Fazemos parte da mesma geração e me senti, muitas vezes, refletido nas tuas palavras.

    Mas ao contrário de você não me atirei nos lápis de cor. A escrita sempre foi o meu escape.

    E, sim, risquei paredes. Com versos sem rima de canções que nunca cheguei a terminar. Com corações disformes e letras avulsas.

    Está tudo lá, hamletianamente, gravado em minha memória.

    Mas de físico, não tenho nada. A demãos de tinta fizeram o favor de apagar aquele gordinho míope e asmático que não sabia porra nenhuma da vida.

    E que continua não sabendo.

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  4. Que belo memorial! Me fez lembrar do dia em que risquei a parede da casa da minha madrinha e levei uma baita surra...rs! Esse tatu tá um escândalo de bom. Um melhor que o outro. Né brinquedo não!!!!

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  5. Muuuito lindinho o texto!! =D
    Ah, eu nunca risquei paredes... Mas serve a porta do quarto? Vez ou outra eu fazia um rabisco lá. =P

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  6. Hehe, estou com a Evana nessa. Só risquei porta do quarto...e da empregada, ainda por cima!

    Lindo texto! Parabéns!

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  7. Em tempo: obrigado pelos comentários de todos. Vocês são lindos!

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